Em um momento em que as doenças crônicas são fatores de risco para a COVID-19, o tratamento cirúrgico para pacientes com Diabetes Tipo 2 – que não conseguem o controle da doença por meio de medicamentos – não terá a cobertura dos planos de saúde.
Isso porque durante a 543º reunião da diretoria colegiada da Agência Nacional de Saúde (ANS), realizada no dia 10 de fevereiro, a área técnica manteve a recomendação de não inclusão do procedimento no rol de procedimentos obrigatórios dos planos de saúde. A decisão final, no entanto, será emitida pelos diretores da ANS e deverá ser anunciada definitivamente na próxima reunião, no próximo dia 24.
“A não recomendação da cirurgia metabólica demonstra que a ANS está deixando de ouvir a comunidade científica, entidades médicas e a população que sofre com a doença”, declarou o presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica, uma das entidades que contribuiu cientificamente para a inclusão do tratamento no rol da ANS, Fábio Viegas.
Ele destacou ainda que o último estudo global – publicado recentemente pelo The Lancet e que analisou fatores de risco em 204 países e territórios — revelou que a crise global de doenças crônicas e a falha da saúde pública, em conter o aumento de fatores de risco altamente evitáveis, deixaram as populações vulneráveis a emergências agudas de saúde, como a COVID-19.
Números da consulta pública – Em novembro, a ANS abriu uma Consulta Pública para ouvir a sociedade civil sobre os pareceres técnicos de atualização do rol. A cirurgia metabólica foi o procedimento cirúrgico que mais recebeu contribuições. Das 1552 contribuições, 99% eram favoráveis a incorporação, de acordo com levantamento feito com os dados disponibilizados pela ANS.
Entre as entidades que enviaram contribuições favoráveis estão a ADJ – Diabetes Brasil, Associação Nacional de Atenção ao Diabetes (ANAD), sociedades médicas como Sociedade Brasileira de Diabetes e Colégio Brasileiro de Cirurgiões. Além disso, contou com a contribuição de profissionais vinculados à Secretaria de Estado da Saúde do Distrito Federal e do Paraná, a Hospitais como o Sírio Libanês, Hospital Universitário Santa Terezinha e Hospital Alemão Oswaldo Cruz e Moinhos de Vento, e a pesquisadores da Universidade de Campinas (UNICAMP), Universidade Federal do Paraná (UFPR), Universidade Federal do Piauí (UFPI), Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) , Faculdades Integradas do Vale do Itajaí (Univale), entre outras.
Apenas 18 contribuições concordaram com a decisão preliminar da ANS em não incorporar o procedimento ao rol. Destas, 14 contribuições foram feitas por planos de saúde.
“Acreditamos que a ANS não pode ser balizada apenas pelo interesse econômico das operadoras de saúde que querem gastar menos a curto prazo, mas sim pelo clamor da população que tem uma alternativa para melhorar a sua qualidade de vida de forma eficaz e comprovada cientificamente”, reforça Viegas.
Ele ainda destacou que a cirurgia bariátrica já existe no rol de procedimentos obrigatórios da ANS. “A incorporação visa apenas ampliar o acesso para os portadores de diabetes tipo 2. Sendo assim, não seria um procedimento inédito oferecido pelas operadoras, dispensando a adoção de novas tecnologias e treinamentos para as equipes que atuarão na ponta”, reforça Viegas.
Próximos passos – O parecer emitido no dia 10/02, no entanto, não é definitivo, e precisa ser votado pelos diretores da ANS. Isso deve ocorrer, segundo o que foi informado na deliberação desta semana, na próxima reunião de diretoria, após a apresentação detalhada sobre os procedimentos avaliados para cobertura obrigatória como, por exemplo, o impacto financeiro.
Custo do procedimento- Segundo dados do Estudo de Impacto Orçamentário apresentado pela SBCBM para a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), incorporar a cirurgia metabólica custaria aos planos de saúde 10 centavos por usuário/mês. Técnicos da agência refizeram os cálculos e encontraram 18 centavos por usuário, apesar de se basearem em estudos dos próprios planos de saúde que têm se posicionado contrários à incorporação.
Para a SBCBM, os cálculos divergem pois a ANS se baseou em pacientes com obesidade mórbida submetidos a cirurgias ultrapassadas feitas através de cortes no abdome, diferentemente do modelo utilizado atualmente que se baseia na cirurgia feita por videolaparoscopia, que é mais segura e mais custo-efetiva.
Em outro estudo apresentado para demonstrar a custo-efetividade da cirurgia, os pesquisadores da SBCBM calcularam o custo para se melhorar e estender a vida dos portadores de diabetes, contabilizando apenas a resolução plena da doença. Isso significa que não foi levada em consideração a economia com a redução de complicações ocasionadas pelo Diabetes como amputações, transplantes de rins, hemodiálise e tratamentos de visão.
Importante ressaltar que o Conselho Federal de Medicina (CFM) regulamentou a cirurgia metabólica para pacientes com IMC entre 30 kg/m² e 34,9 kg/m² em 2017, através da resolução 2.172/2017.
Diferentemente da análise feita pela ANS, o processo no CFM envolveu a análise criteriosa das evidências, e a participação de especialistas de diferentes sociedades médicas. O procedimento foi aprovado tanto pela Câmara Técnica de Cirurgia Bariátrica e Metabólica, criada com esse objetivo, quanto pelo plenário composto por conselheiros federais de todo o país.
Definiu-se que pessoas com menos de 10 anos de doença, com idade entre 30 e 70 anos, com pelo menos 2 anos de tratamento sem êxito, podem submeter-se ao tratamento cirúrgico. “Sendo dever do estado e do CFM regular o exercício médico, e um direito do cidadão que contribui para os planos de saúde, não incorporar essa tecnologia ao Rol de procedimentos obrigatórios poderá ter efeitos imprevisíveis nas relações entre os usuários e os planos de saúde, com aumento da judicialização e uma série de consequências indesejáveis”, afirma o cirurgião e ex-presidente da SBCBM, Marcos Leão Vilas Bôas, – autor da contribuição feita durante a consulta pública da ANS em nome da SBCBM no ano passado.
Repercussão – Para o diretor presidente da ADJ – Diabetes Brasil, Gilberto Soares Casanova, o tratamento cirúrgico do diabetes, para quem não responde ao tratamento clinico, pode ser um ótimo recurso para as pessoas com diabetes. “A cirurgia metabólica tem 13 estudos randomizados e controlados que comprovam as vantagens dos procedimentos cirúrgicos. Negar o acesso, é negligenciar a vida”, enfatiza Casanova.
Já o presidente do Colégio Brasileiro de Cirurgiões (CBC), Luiz Carlos Von Bahten, destacou na contribuição da entidade que a cirurgia metabólica reduz a incidência do surgimento de várias complicações do Diabetes Tipo 2. “Entre elas a insuficiência renal, doença vascular periférica, retinopatia diabética, infarto agudo do miocárdio, acidente vascular cerebral, insuficiência cardíaca e outras. Contribui, dessa forma, para melhora da qualidade de vida e reduz a mortalidade à longo prazo desses indivíduos”, reforça Bahten.
Comprovação científica – A cirurgia para o diabetes ou metabólica é indicada para pacientes com diabetes tipo 2, diagnosticado há menos de 10 anos, com Índice de Massa Corporal (IMC) entre 30 kg/m² e 34,9 kg/m², entre 30 e 70 anos de idade e que não conseguem controlar a glicemia com o tratamento clínico medicamentoso.
O procedimento é realizado por videolaparoscopia, através de pequenos furos na parede abdominal. Essa alteração promove a passagem mais rápida do alimento do estômago para o intestino e traz mudanças metabólicas como a aceleração da produção de hormônios, que atuam no pâncreas melhorando a produção de insulina, o que normaliza os níveis de glicose no sangue.
Os estudos têm demonstrado benefícios a médio e longo prazo para a qualidade de vida destes pacientes como, por exemplo, que 45% dos pacientes entram em remissão do diabetes (deixam de tomar medicamentos e insulina) já no primeiro ano de cirurgia.
Além disso, a cirurgia metabólica é uma ferramenta eficaz para prevenir complicações graves do diabetes como a insuficiência renal, a retinopatia diabética, acidentes cardiovasculares e os problemas de úlcera e gangrena dos membros inferiores que levam muitos pacientes a ter de amputar parte da perna.
Em 2016 um consenso endossado por 53 associações médicas de todo o mundo, incluindo a American Society for Metabolic and Bariatric Surgery (ASMBS), a American Diabetes Association (ADA), o National Institute for Health and Care Excellence (NICE) da inglaterra, e a Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica (SBCBM), revisou as recomendações de tratamento do diabetes, referendando a cirurgia bariátrica/metabólica como opção para pacientes com IMC entre 30 kg/m² e 34,9 kg/m² com inadequado controle da glicemia. A International Diabetes Federation (IDF) já reconhecia essa possibilidade terapêutica desde 2011.
Segundo Marcos Leão, dezenas de estudos com elevado rigor científico, nível 1 e 2 de evidência, englobando meta-análises, revisões sistemáticas e ensaios prospectivos randomizados, comparando a cirurgia bariátrica com o melhor tratamento clínico farmacológico demonstraram uma enorme superioridade da cirurgia no controle do diabetes, observados a partir da redução da glicemia e da hemoglobina glicada de pessoas com obesidade grau 1 (IMC entre 30 e 34,9).
“Muitos desses estudos englobaram faixas de IMC mais largas (30 a 40), com pacientes portadores de obesidade graus 1 e 2, porque no caso do paciente com diabetes, o peso é apenas um “evento substituto” na análise do tratamento, restando claro que os resultados são totalmente independentes do IMC”, reforça Marcos Leão.
Dados sobre Diabetes Tipo 2 – O diabetes é uma doença que afeta 16,5 milhões de brasileiros (Dados da Federação Internacional de Diabetes), provocando mais de 54.877 mortes em 2010 e chegando a 61.398 no ano de 2016, havendo um crescimento de 12%, segundo os dados do Ministério da Saúde de 2018.
De acordo com um estudo da Universidade de São Paulo, 77% das pessoas com diabetes tipo 2 não aderem ao tratamento. Assim sendo, as principais complicações advindas do mau controle do diabetes são: dificuldade visual levando à cegueira, primeira causa de ingresso a programas de diálise no primeiro mundo e entre as 3 causas mais frequentes na América Latina, importante determinante de amputações. É um dos principais fatores de risco cardiovascular, além da incidência de insuficiência cardíaca (IC) é 2 a 5 vezes maior em pacientes com DM2 do que na população geral.