Fico olhando para ti, meu bichinho, que um dia, num passado que não sei, já foste muito amado, tanto que qualquer pequeno carinho te deixa emocionado de ternura, os olhos líquidos de lágrimas, um milímetro da linguinha de fora dentre os dentes fechados, assim como quem não crê que aquilo tenha voltado (o carinho), ou lembrando talvez de um lugar e de um tempo do passado quando foste tão feliz com aquela pessoa que te deu amor, te ensinou a entender que estavas seguro, te ensinou a andar de carro no banco de traz, bem comportadinho…
Penso em quem foi essa pessoa: uma criança? Um homem? Uma mulher? Que nome terias então?
Impossível saber as coisas da tua pequena vida, que a veterinária disse que está entre dois ou três anos – que foi que te aconteceu? Eu, cá comigo, penso que em algum momento foste roubado com quem te quis porque eras pequenino, parecido com uma raposinha, pretinho com detalhes champanhe – quem te roubou? Um homem, uma mulher, uma criança? Impossível saber, mas decerto foi a partir daí que começou o teu duro calvário, sabe-se lá como, se ficaste passando de mão em mão, se fugiste à procura de quem te amava e foste de ancorar no lado podre da vida sem saber, sem querer – sei o que te passou aí nesse teu tempo turbulento: fome, maus tratos, falta de amor… Em algum momento conheceste o ódio de uma mulher má, daquelas parentes de bruxa malvada (talvez fosse a própria bruxa, como saber, aqui nessa proximidade de Naufragados, lugar de sabás de bruxas?), dessas pessoas de coração empedernido, dessas que dá asco até em Satanás, que foi aquela que os meus vizinhos viram quando veio a esta Enseada de carro e te atirou longe, na maré alta, para que te afogaste, sem nem o direito a uma última refeição, como o sórdido sistema prisional dos Estados Unidos ainda concede aos que estão para serem executados.
Sei de ti desde então, do alvoroço dos vizinhos por terem falado com aquela mulher má que ainda ficou jogando chispas de raiva antes de se ir como uma possessa, do teu quase último alento para sair das águas, todos molhadinho e trêmulo, e de como te segurei junto ao coração. Sei da fome que tinhas, que comias qualquer comida, mesmo cheia de formigas, e do teu cansaço, e da tua sede, e de como dormiste como um mortinho quando te botei dentro de uma casinha improvisada com uma caixa de papelão.
São cinco semanas, agora, que estamos juntos, e quanta coisa aprendi a teu respeito, como essa de teres o conhecimento do amor, um dia, quando não sei adivinhar, mas que posso imaginar, e fico a me perguntar quem te ensinou o amor, um dia, que não esqueceste dele mesmo depois de todas as maldades pelas quais passaste, e te tornaste capaz de amar de novo, e a cada pequeno gesto de carinho que te faço, quase te derretes de amor por mim, e vejo nos teus olhinhos marejados que há a lembrança de alguém, lá no passado, que te amou também, que foi tão bom para contigo que agora continuas apto a amar de novo…
Hoje és meu cachorrinho e te chamo de Zorrilho, por tua semelhança com uma raposinha, e sabes e entendes quando te chamo assim que agora esse é o teu nome, e percebo, na tua ânsia de correr atrás de cachorrões quinze vezes mais pesados do que os teus parcos dois quilos (penso que tinhas uns 500 gramas quando chegaste, cinco semanas atrás), que serias capaz de morrer por mim.
Tu és bonzinho, educado, cordato, cachorrinho que sabe andar de carro e que num instante aprendeu que gosta muito de comer carne, molhos saborosos, nata, requeijão, coisas refinadas para um cão, e andas a rejeitar estas bobagens como arroz ou ração e, sobretudo, o quanto amas o pouco de amor que posso te dar (Atahualpa tem grande ciúme de ti) – não terias aprendido tanta coisa em cinco semanas se lá no teu curto túnel do tempo não tivesse havido aquela pessoa que um dia te deu amor em grande quantidade. Corta-me o coração ver teus olhinhos marejados de lágrimas quando recebes carinho e me fitas através daquele espelho líquido, transformado em emoção pura, a pensar que um dia, lá no passado…
Ah! Zorrilho, já se tornou bastante complicado vir a viver a vida, um dia, sem ti!
Enseada de Brito, 14 de Janeiro de 2017
Urda Alice Klueger
Escritora, historiadora e doutora em Geografia.