As duas chacinas ocorridas em penitenciárias do norte do país nesta semana chocaram o Brasil. No dia 1º, 56 presos foram mortos em Manaus, em um conflito entre duas facções. Cinco dias depois, outros 33 presos morreram em um presídio de Boa Vista. O rastro de sangue – que está longe de ser um “acidente”, como o chamou o presidente Michel Temer – deixa uma pergunta importante: existe alternativa para o sistema carcerário no Brasil?
Quem diria: o Brasil, país com a quarta maior população carcerária do mundo, onde 82% dos ex-presidiários voltam a cometer crimes, é o lugar de origem de um sistema prisional revolucionário, que já foi exportado para mais de vinte países e que chegou a ter o nome do seu criador cogitado para o Prêmio Nobel da Paz. Trata-se do método APAC, criado por Mario Ottoboni na década de 1970 em São José dos Campos (SP).
O princípio básico da APAC – Associação de Proteção e Assistência ao Condenado – é que ninguém é irrecuperável e todo homem é maior que o seu erro. Por isso, lá não se fala de prisioneiros, mas de recuperandos ou reeducandos, e o presídio tem outro nome, Centro de Reintegração Social.
Mas a mudança não está só nas nomenclaturas: nas APACs não há polícia, guardas, circuito interno de televisão, armas, algemas nem carcereiros. Os próprios recuperandos ficam com as chaves e fazem a segurança. Eles devem trabalhar, estudar e aprender uma profissão. Cada um tem uma cama macia, o banho é quente e a comida é adequada – boa parte da alimentação vem da plantação mantida pelos presos. É incentivada a proximidade da família e a prática religiosa. Além disso, nenhum preso fica sem assistência jurídica. As transgressões são punidas com o retorno a um presídio comum.
O resultado é claro: o índice de reincidência é de 8,62%. As tentativas de fuga são raríssimas – com frequência dependentes químicos em crise de abstinência. E nesses mais de 40 anos desde a criação do método, nenhuma rebelião, nenhum homicídio, nenhum motim. Tudo isso com um custo de cerca de um salário mínimo e meio por preso por mês – nas prisões comuns, esse valor chega a quatro salários mínimos.
“Há disciplina, hora para tudo. E muito respeito pelo ser humano”, conta Ottoboni, 84 anos, um advogado com formação em ciências sociais e políticas, que desenvolveu o método APAC em plena ditadura militar com o apoio da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, sobretudo de dom Paulo Evaristo Arns, dom Ivo Lorscheiter e dom Luciano Mendes de Almeida.
Hoje, o método é reconhecido como alternativa de humanização do sistema penitenciário pela Prison Fellowship International, organização não-governamental que atua como órgão consultivo da Organização das Nações Unidas em assuntos penitenciários. Charles Colson, assessor jurídico do ex-presidente norte-americano Richard Nixon, chegou a cogitar o nome de Ottoboni para o Nobel da Paz.
“Muita gente importante, que se beneficia do que acontece no sistema carcerário brasileiro, não quer que mude”, denuncia fundador do modelo
Ottoboni é franco na denúncia do atual sistema carcerário brasileiro, que conhece bem. “Eu frequento cadeias desde 1972, ao contrário de secretários da Justiça, governadores, ministros que nunca colocaram o pé em uma cadeia. Quando vão, chegam cercado de jornalistas. Eu conheço o dia-a-dia”, diz ele, em entrevista ao R7.
“As presidiárias do Brasil são masmorras nojentas. Não são escolas de crime. São faculdades. A pessoa sai da cadeia revoltada, disposta a devolver ao sistema o que recebeu. Se o país o fez passar por todo tipo de humilhação possível, devolverá na mesma moeda. Até pior.”
Para Ottoboni, a situação do sistema carcerário brasileiro não é por acaso. “Lógico que há quem se beneficie. O custo de cada preso nestas cadeias é absurdamente caro. Se o dinheiro que o Estado gasta realmente chegasse ao preso, ele teria uma vida de luxo. O que se paga aos fornecedores de comida, uniforme é absurdo. Sem controle. Muita gente importante, que se beneficia do que acontece no sistema carcerário brasileiro, não quer que mude. Ele movimenta muito dinheiro”, afirma.
É o que favorece a atuação de facções criminosas. “O sujeito quando é preso fica abandonado à própria sorte pelo governo”, diz Ottoboni. “Sem ter o que fazer, enjaulado, abusado, humilhado. E aí as facções oferecem proteção, dinheiro, droga, mordomias na cadeia, proteção à família que está fora. O sujeito aceita. Só que vai ter de pagar por tudo isso. Vira um operário do crime organizado. Sai muito pior do que entrou. E ainda completamente comprometido com as facções. O governo finge que não sabe. Ou melhor, não quer nem saber”, denuncia.