Às 5h da madrugada de domingo, Isaac Daniel Junior, 23 anos, dava pequenos pulos no palco, como um lutador de boxe se aquecendo para outro round. Nem parecia que ele tinha passado a tarde anterior no hospital, travado de dor na coluna. Ele cantava pela 14ª vez na noite a música “Bumbum granada”, primeiro hit do seu duo de funk Zaac & Jerry.
Foram sete shows em nove horas, em São Paulo, Guarujá, Itapecerica da Serra, Taboão da Serra e Itaquaquecetuba (SP). Cada show de pouco mais de 15 minutos tem duas vezes o hit. O clipe de “Bumbum granada” tem impressionantes 80 milhões de cliques em um mês e meio (clique aquipara assistir). A chance rara de sair do anonimato pode explicar o esforço na maratona.
Isaac e Rodrigo Silva dos Santos, ou Zaac e Jerry, se juntaram em 2015 no Jardim Inamar, bairro de classe média baixa de Diadema (SP). Ambos queriam ser artistas desde cedo. Jerry fazia teatro e Zaac estudava para ser desenhista. Acharam no funk um meio viável para criar.
O hit surgiu de brincadeira no estúdio. O tal “bumbum granada” faz referência a “tacar o bumbum”, gíria comum no funk que descreve a dança feminina em bailes. “Tacar a granada” veio dessa gíria, Jerry tenta explicar. Além da inusitada associação bélica, a canção se destaca pela voz grave dele, que repete: “Taca, taca, taca, taca…”.
O verbo é pronunciado 72 vezes na faixa. Nas 14 execuções da música ao longo dos sete shows, foram ouvidos 1008 “tacas”.
O hit paulista já embalou dois festejados eventos culturais do Rio: gol do Flamengo e show da Anitta. O flamenguista Felipe Vizeu fez a dança após seu gol contra o Vitória. Anitta dançou no palco e fez bis no Snapchat. Pudera: “Bumbum granada” estourou mais rápido que os bombados clipes dela.
É um golaço para jovens que trabalhavam como assistente de loja de colchões e cabeleireiro (Jerry cortava até o cabelo de Zaac para ajudar). Em conversa na van, eles listam quem já se rendeu ao hit. “Esse sempre foi nosso sonho”, fala Jerry, com sua voz naturalmente grave.
O roteiro de sábado (11) ia de uma quermesse na favela do Areião, no Guarujá, com crianças se descabelando atrás de uma grade de madeira prestes a cair, a uma festa no Club A de Moema, com entrada a R$ 100 e adolescentes bem penteados e igualmente animados. Fora “Bumbum granada”, há a nova “Paranauê” e covers como “Toda toda” e “Rap da felicidade”.
A corrida entre shows é frenética. O jantar foi servido na van. Jerry protestou para descer e comer “no prato, arroz e feijão”, mas engoliu Coca-Cola com Mc Angus Bacon, lanche difícil de segurar enquanto a van fazia curvas fechadas. O cardápio é idêntico para toda a equipe: um DJ, um fotógrafo, dois empresários, dois assistentes e a equipe do G1.
Zaac e Jerry em maratona de sete shows no sábado (11) (Foto: Fabio Tito / G1)
“Os dois às vezes me perguntam: ‘Onde estamos agora?’ E até eu me confundo”, diz Fábio Ferreira, um dos três empresários deles, sobre a correria de shows. A dupla mata o tempo no videogame instalado na van, jogando Barcelona X Real Madrid no PES 2013. (Jerry tem mais moral, mas Zaac ganhou naquela noite, enquanto tomava uma garrafinha de achocolatado.)
“Quase não fico em casa. Hoje, se eu deitar na minha cama só para me cobrir, tirar a coberta e sair fora, já está bom. Ligar a TV de casa e desligar para ir para a correria seria ótimo”, brinca Jerry. Nem isso Zaac conseguiu no dia: foi ao hospital com dor nas costas. “Travei, não conseguia nem levantar.” Analgésicos e agenda cheia o curaram.
Quem liga a música simples deles a “funkeiros de vida fácil” não poderia estar mais errado. Da maratona do sábado, iriam direto ao aeroporto rumo a Vitória (ES). Neste sábado e domingo (25 e 26), são seis shows por dia. Para aliviar a jornada, só o analgésico para Zaac e uma dose de uísque para Jerry – apenas após o último show, antes disso só Toddynho.
Fábio conta que seu problema nunca foi fazê-los trabalhar, mas o oposto. “Zaac ia aos bares e pedia para cantar de graça. Não podia ver microfone. Eu falava: ‘Cara, se prepara. Não adianta ir assim’. Eles ficavam bravos”. O empresário proibiu shows de graça. Hoje chovem convites pagos. Fábio prefere não citar valor de cachê por segurança dos músicos.
A dupla ainda parece desnorteada quanto à nova vida. Mas uma mudança é óbvia: “As meninas me falam: ‘O que aconteceu? Você está diferente, mais bonito…”, diz Zaac aos risos. “Para as que perguntam ‘você lembra de mim?’, respondo: ‘Ah, sim, aquela que não dava bola, me xingava… Não dá, agora é tarde.’” Ambos estão solteiros.
A não ser que se apaixonem por uma motorista de van, engatar um namoro agora é mesmo difícil. Isso não parece atrapalhar o momento deles. “Desde criança, sempre quis ser artista, que o pessoal me conheça pelo que faço”, diz Jerry, nascido em Una, no litoral sul da Bahia, e criado na vizinha Canavieiras, até ir para Diadema.
O início da história não é incomum. Centenas de funkeiros concorrem em SP. As origens são sempre humildes, geralmente com pai ausente – o de Jerry morreu quando ele era criança; o de Zaac se separou cedo e eles mantêm pouco contato. A criatividade (fossem ricos, se chamaria “veia artística”) é outra interseção. Zaac no desenho, Jerry no teatro.
Jerry fala de aulas sobre Brecht (“É o teatro épico, né, Fábio?”, pergunta ao empresário, que já foi ator) e se esforça para pronunciar o nome do dramaturgo alemão. Ele também já se desiludiu com outro sonho concorrido: futebol. Diz que foi bem em amistoso no Palmeiras aos 16 anos. Mas teve um estiramento na coxa e “foi esquecido”, conta, sem disfarçar a mágoa.
“Fiz um golaço lá, um excelente jogo, e os caras gostaram de mim. Passou três dias, me machuquei e fiquei dois meses parado. Os caras não me quiseram mais. Fiquei uma cota sem querer nem ver jogo na TV, porque o bagulho era desejo de moleque”, explica.
Fábio chegou a acompanhar outro funkeiro em sete shows na mesma noite. Em 2010, MC Ponês, que estava preso, foi liberado da cadeia e viu disparar a demanda por apresentações. “O funk tem esses altos e baixos. Aquele era o momento dele”. O momento hoje é de Zaac & Jerry, sem dúvida. E eles já têm sua marca: o “taca taca” grave, repetido à exaustão.
Após a viagem, porém, a impressão mais marcante, que diferencia o duo da multidão de concorrentes, é a cara animada após 1008 “tacas”. A resiliência de Zaac, que superou em poucas horas a contusão na coluna que o travou; a obstinação de Jerry, que não parece ter superado, depois de cinco anos, o estiramento na coxa que matou seu primeiro sonho.