“É uma vida de paciência, e a paciência se consegue com o tempo”
Precisamos entender, antes de tudo, que esse conflito é social. Um choque de culturas e gerações, lutando pela permanência de suas raízes e poder.
É intrínseco em nossa formação o sentimento de posse e cuidado. As praias são secularmente habitadas por nativos que mantém em suas comunidades a cultura e os costumes coletivos da pesca artesanal. Tiram da natureza aquilo que é necessário.
Ao mesmo tempo que os surfistas de hoje preservam as praias através dos códigos de ética que muitas vezes enveredaram para o localismo, preservando as praias agrestes, dunas e costões.
A pesca artesanal luta pela manutenção da harmonia entre homem e natureza. Praticam a pesca de sobrevivência, são formadores de opinião, de ação e reação, gerando uma movimento cíclico em suas culturas, que em teoria deveriam viver em harmonia no mesmo ambiente que frequentam, esperando o outono para ter o melhor de si.
A pesca artesanal da tainha, antes de solução financeira, é uma manifestação cultural rica e importante traço da colonização no cenário catarinense, sendo reforçada e esperada pelas comunidades litorâneas.
Aquele que não leva a arte e a cultura a sério, também não traz em si os traços da evolução.
O surfista, com sua cultura predominante nestas passadas duas décadas pelo litoral catarinense herda do caiçara uma singularidade: a paixão pelo mar e sua relação familiar com o oceano. Em consequência disso, um choque de gerações fomenta a discussão. Mas então por que não conseguem viver em harmonia?
Entre a redoma invisível que por um lado traz a poluição jogada diretamente no mar e por outro o engarrafamento cada vez mais próximo dos barcos de pesca industrial vivem os surfistas que passam o ano esperando pelas ondulações perfeitas de outono e os pescadore que vigiam as tainhas vindo do sul e aqui chegam para procriar. Um êxodo milenar e temporal.
O peixe, cada vez mais escasso em águas rasas, este ano tem vindo em abundância. Talvez seja o atraso na liberação da pesca industrial, com o intuito de aumentar a reprodução da espécie e favorecer a pesca artesanal. Talvez seja somente o clima frio e as correntes de sul, que além de trazerem peixes, também trazem as ondas.
Não se vê, em qualquer outro lugar do mundo, discussão sobre a propriedade do mar entre pescadores e surfistas. Não há, em qualquer praia do mundo, proibição do surfe ou leis específicas que tentam pôr fim a uma discussão que só vai terminar o dia em que uma geração se tornar predominante a outra em adeptos. Só o tempo dirá.
Quaisquer leis ou regulações estabelecidas pelos municípios ou pelo estado vão contra as determinações das lei marítimas, responsabilidade do Governo Federal. A Convenção das Nações Unidas Sobre Direito do Mar estabeleceu os moldes que nosso país segue, e dentro dela organizaram-se as leis nacionais.
Através de uma portaria do IBAMA delimitou-se os parâmetros para permissão da pesca artesanal com intuitos de preservar as nascentes, rios, encostas e manter a reprodução das espécies estimuladas. Neste ínterim formou-se o cenário jurídico que tenta estabelecer um meio termo entre os surfistas e pescadores. A partir daí, leis municipais foram criadas tornando limítrofes as áreas para surfe e pesca durante a época da tainha.
Publicaram listas com praias “fechadas” e praias “abertas” para a prática do surfe, e criaram um sistema de bandeiras que seria comandado pelos vigias dos pescadores de tal modo que ao avistar os peixes chegando na costa elas seriam hasteadas avisando da proibição da prática do surfe. Em dias com ondas grandes, onde não se poderia entrar de barco no mar, ou quando não houvesse cardumes avistados, o surfe seria liberado com a colocação da bandeira da liberação.
Acontece que vivemos em uma sociedade individualista e preconceituosa, e a exclusividade do “meu direito” é maior que o direito do próximo. Armou-se o conflito, que poderia ser resolvido de maneira simples e simbólica, ali mesmo na areia, com o surfista ajudando no arrastão e comendo uma tainha escalada depois.
A questão econômica também pesa. Época em que a maioria dos pescadores obtém uma melhoria financeira para sua sobrevivência no resto do ano, a indústria do surfe e do turismo deixa de promover renda também na melhor época de ondas. Nosso litoral passa por uma silenciosa revolução onde o surfe tem ditado a tônica da geração de renda, e seus obstáculos maiores ainda são a poluição crescente e a resistência cultural.
Porém o dinheiro não deve se sobressair a cultura tampouco a tradição. Devem andar em harmonia.
Estabelecer relações de confiança
Parece que está sendo encontrado a única saída para resolver este conflito. Nas últimas semanas, em negociações acompanhadas pelo Ministério Público e o Poder Municipal de Florianópolis surfistas e pescadores tomaram uma decisão que pode ser utilizada de parâmetro para todo o litoral catarinense, principalmente pelos atores envolvidos. A FECASURF, enquanto representante maior da categoria no estado e a entidade estadual representante dos pescadores artesanais partiram para o caminho de ceder para avançar. As pontes de transição entre o conflito e a paz reinante, até porque muitos indícios dão conta de que o inimigo maior de ambos não está concentrado em um ou outro, mas sim em forças maiores que estabelecem padrões de consumo baseados no acúmulo de renda extremamente predatório.
Diminuíram o período de proibição do surfe, e ao mesmo tempo mais praia foram fechadas totalmente para a prática do esporte. Além disso, o controle das bandeiras nas praias agora é coletivo, definido em reuniões diárias entre os representantes de surfistas e pescadores, e acompanhado por um fiscal do poder público municipal.
Nada mais além do que o bom senso para tentar solucionar uma rixa praiana que dura mais de trinta anos, descabido em nossa sociedade. Os pescadores, com sua visão de localismo determinam as regras através de seu código de conduta, que recebe resistência daqueles que tem a sua própria feição com relação ao mar.
Até que se prove o contrário, o mar está para peixe, para pescador e para surfista.